A Anarquia Defendida pelos Anarquistas | Emma Goldman; Johann Most

Para a maioria dos americanos a anarquia é uma palavra que soa mal – outro nome para ruindade, perversidade e caos. Os anarquistas são considerados como um rebanho de bandidos despenteados, imundos e vis, decididos a matar os ricos e dividir seu capital. A anarquia, no entanto, para os seguidores, na realidade significa uma teoria social que diz respeito à união da ordem com a abstenção de todo governo do homem pelo homem; em resumo, significa a perfeita liberdade individual.

Se o significado da anarquia tem sido até agora interpretado como um estado de grandiosa desordem, é porque o povo foi ensinado que os seus negócios são regulamentados, que eles são sabiamente regulados e que a autoridade é uma necessidade.

Em séculos passados qualquer pessoa que afirmasse que a humanidade poderia se dar bem sem a ajuda da autoridade mundana e espiritual era considerada louca, ou era colocada num asilo para lunáticos ou queimadas em estacas; enquanto hoje centenas de milhares de homens e mulheres são infiéis que desprezam a ideia dum Ser sobrenatural.

Os livres-pensadores de hoje, por exemplo, ainda acreditam na necessidade do Estado, o qual protege a sociedade; eles não desejam conhecer a história das nossas instituições bárbaras. Eles não entendem que o governo não existiu e nem pode existir sem opressão; que cada governo cometeu atos sombrios e grandes crimes contra a sociedade. O desenvolvimento do governo segue em ordem o despotismo, a monarquia, a oligarquia, a plutocracia; mas sempre foi uma tirania.

Não se pode negar que há um número grande de pessoas sábias e bem-intencionadas que são ansiosas em melhorar as condições presentes, mas elas não se emanciparam suficientemente dos preconceitos e superstições da idade das trevas para entender a natureza íntima verdadeira da instituição chamada governo.

Como a gente pode se dar bem sem governo?” perguntam essas pessoas. “Se o nosso governo é mau, a gente tenta um bom, mas a gente com certeza deve ter governo!

O problema é que não há esse tal de governo bom, pois a sua própria existência é baseada na submissão duma classe à ditadura da outra. “Mas os homens devem ser governados”, alguns comentam; “eles devem ser guiados por leis”. Bem, se os homens são crianças que devem ser lideradas, quem, portanto, é tão perfeito, tão sábio, tão irrepreensível a ponto de ser apto a governar e guiar seus companheiros?

Nós afirmarmos que os homens podem e deveriam se governar individualmente. Se os homens ainda são imaturos, os governantes também são. Deveria um homem, ou um pequeno número deles, liderar todos os milhões de cegos que compõem uma nação?

Mas a gente deve ter alguma autoridade, pelo menos”, nos disse um amigo americano. Certamente nós devemos e nós o temos, também; é o inevitável poder das leis naturais, o qual se manifesta no mundo físico e social. Nós podemos ou não entender essas leis, mas devemos obedecê-las porquanto elas fazem da nossa existência; nós somos os escravos absolutos dessas leis, mas não há humilhação nessa escravidão. A escravidão tal como existe hoje significa um mestre externo, um legislador externo àqueles a quem ele controla; enquanto as leis naturais não estão fora de nós – elas estão em nós; nós vivemos, respiramos, pensamos e nos movemos unicamente através dessas leis; elas não são portanto nossas inimigas, mas nossas benfeitoras.

As leis feitas pelo homem, as leis nos nossos livros de estatutos, estão em conformidade com as leis da Natureza? Ninguém, pensamos, pode ter a temeridade de afirmar que elas estão.

É porque as leis prescritas para nós pelos homens não estão em conformidade com as leis da Natureza que a humanidade sofre de tanto mal. É absurdo falar de felicidade humana enquanto os homens não forem livres.

Não nos surpreende que algumas pessoas sejam tão amargamente opostas à Anarquia e os seus exponentes, pois ela exige mudanças tão radicais das noções existentes, enquanto que os últimos ofendem em vez de conciliar pelo zelo da sua propaganda.

Paciência e resignação são pregadas aos pobres, lhes prometendo uma recompensa futura. O que importa ao pária condenado que não tem lugar para chamar de seu, que está suplicando por um pedaço de pão, que as portas do Paraíso estão mais abertas para ele do que para o rico? Na face da grande miséria das massas tais promessas parecem ironia amarga.

Eu encontrei muito poucos mulheres e homens inteligentes que honesta e conscientemente poderiam defender os governos existentes; eles até concordam comigo em muitos pontos, mas lhes faltava coragem moral, quando chegou ao ponto, para dar um passo à frente e se declararem abertamente simpáticos aos princípios anarquistas.

Nós que escolhemos o caminho estabelecido por nós pelas nossas convicções nos opomos à organização chamada Estado, a princípio, reivindicando o igual direito de todos a trabalhar e desfrutar a vida.

Assim que estiverem livres das restrições de autoridade alheia, os homens entrarão em relações livres; organizações espontâneas brotarão em todas as partes do mundo e cada um contribuirá para o seu bem-estar próprio e o comum tanto trabalho quanto ele ou ela for capaz e realizar, e consumir de acordo com as suas necessidades. Todas as invenções técnicas e descobertas modernas serão empregadas para tornar o trabalho fácil e prazeroso, e a ciência, a cultura e a arte serão livremente usadas para aperfeiçoar e elevar a raça humana, ao passo que a mulher estará na mesma condição que o homem.

Isso é tudo muito bonito”, responde alguém, “mas as pessoas não são anjos, os homens são egoístas”. E daí? Egoísmo não é um crime; só se torna um crime quando as condições são tais como dar a um indivíduo a oportunidade de satisfazer seu egoísmo em detrimento de outros. Numa sociedade anarquista todo mundo buscará satisfazer seu ego; mas como a Mãe Natureza arrumou de tal forma as coisas que apenas sobrevivem aqueles que têm a ajuda dos seus vizinhos, o homem, a fim de satisfazer seu ego, estenderá a sua ajuda para aqueles que o ajudarão, e logo o egoísmo não mais será uma maldição mas uma benção.

Um punhal numa mão, uma tocha na outra, e com bombas dinamites escapando dos bolsos de tão cheios – esta é a imagem do anarquista tal como foi desenhada pelos seus inimigos. Eles olham para ele simplesmente como uma mistura dum bobo com um patife, cujo único propósito é uma confusão universal e cujo único meio para esse propósito é assassinar todo e qualquer um que difira dele. A imagem é uma caricatura feia, mas a sua aceitação geral não é nenhuma surpresa [1], considerando o quão persistentemente a ideia tem sido martelada na mente do público. No entanto, nós acreditamos que a Anarquia – que é a liberdade de cada indivíduo da limitação nociva pelos outros, sejam esses outros indivíduos sejam um governo organizado – não pode ser produzida sem violência, e esta violência é a mesma que venceu em Termópilas e Maratona [2].

A reivindicação popular pela liberdade é mais forte e mais clara do que jamais foi, e as condições para alcançar o objetivo são mais favoráveis. É evidente que pelo curso total da história corre uma evolução diante da qual a escravidão de qualquer tipo e a compulsão sob qualquer forma devem ruir, e da qual a liberdade, completa e ilimitada liberdade, para todos e de todos deve vir.

Disto se segue que o anarquismo não pode ser um movimento retrógrado, como tem sido insinuado, pois os anarquistas marcham à frente e não na traseira o exército da liberdade.

Nós consideramos absolutamente necessário que a massa do povo não deveria, sequer por um momento, esquecer a disputa gigantesca que deve vir antes de que as suas ideias possam ser realizadas, e por isso eles usam todos os meios à sua disposição – a fala, a imprensa, o fato – para apressar o desenvolvimento revolucionário.

O bem-estar da humanidade, como o futuro deve e deixará claro, depende do comunismo. O sistema do comunismo logicamente exclui toda e qualquer relação entre mestre e servo e realmente significa anarquismo, e o caminho para este objetivo se dá através duma revolução social.

Quanto à violência que as pessoas consideram marcas características dos anarquistas, não se pode e nem se deve negar que a maioria dos anarquistas se sentem convencidos de que a “violência” não é nem um pouco mais repreensível para realizar seus desígnios do que quando é usado por um povo oprimido para obter liberdade. O levante dos oprimidos sempre foi condenado pelos tiranos: Pérsia foi pega de surpresa na Grécia, a Roma nas Forcas Caudinas e a Inglaterra em Bunker Hill [3]. Pode a Anarquia esperar menos ou reivindicar vitórias sem se esforçar por elas?

NOTAS:

[1] Do início deste parágrafo até “não é nenhuma surpresa” parece que foi retirado de um escrito do Johann Most de 1890 intitulado “The social monster”. [N.T.]

[2] Refere-se às batalhas de Termópilas e de Maratona. A primeira é conhecida pela luta entre as forças gregas lideradas pelos espartanos contra os persas no ano de 480 a.C.. Esta batalha serviu de inspiração para a série de histórias em quadrinho “300”, do Frank Miller, de 1998.

A segunda foi a Primeira Guerra Médica, ocorrida em 490 a.C. na planície de Maratona. Atenienses e plateenses (de Plateias, antiga cidade da Beócia), sob o comando de Milcíades, avançaram contra os invasores persas. Eram aproximadamente 15 mil gregos, sem cavalaria e sem arqueiros, dispostos a lutar corpo a corpo contra os persas. Ao se depararem com aqueles milhares de homens correndo na sua direção, os persas decidiram recuar, espantados com a disposição – que eles consideraram irracional- dos guerreiros em lutar mesmo sem armas. É neste episódio que surge o personagem Fidípedes, corredor enviado por Milcíades a Atenas para anunciar a vitória. Conta-se que Fidípedes correu tanto e de tal forma que, ao chegar em Atenas, só foi capaz de pronunciar a vitória ocorrida. É daí que teria vindo a modalidade de corrida denominada “maratona”. O intuito de Emma era demonstrar que, por mais armado que um exército opressor esteja, ele não é capaz de encarar a disposição de milhares de oprimidos prontos para o combate. [N.T.]

[3] A Batalha das Forcas Caudinas ocorreu em 321 a.C. e foi um evento decisivo na Segunda Guerra Samnita. Apesar do nome, não houve combate nem baixas: os romanos simplesmente foram emboscados num local sem água pelos samnitas antes de saberem o que estava rolando e não tiveram outra opção a não ser negociarem. O intuito de Emma , com este exemplo, é demonstrar que a sagacidade é um fator determinante na luta: armadilhas bem pensadas dispensam o desperdício de energia que um confronto direto poderia exigir e, a depender da situação geral, poderia significar uma derrota.

Já a Batalha de Bunker Hill foi um confronto militar. Realizada em 17 de junho de 1775 entre milícias norte-americanas pró-independência e o exército britânico, ela não foi uma vitória para as milícias norte-americanas. Contudo, a vitória do exército britânico é considerada uma vitória pírrica, pois o número de baixas (mortos e feridos) no exército britânico foi tão grande, que seria mais vantajoso não ter realizado o confronto. [N.T.]

O texto foi publicado originalmente em Metropolitan Magazine, vol. IV, No. 3; October 1896.

Tradução: Inaê Diana Ashokasundari Shravya