Afinidade e Organização Informal | Alfredo M. Bonanno

Sugerimos, para uma melhor concentração e apreciação da leitura e do estudo revolucionário, colocar o The curse of colonialism series, de Modest by Default para tocar enquanto você lê.

Boa leitura!

*******

Nos companheiros anarquistas existe uma relação ambivalente com o problema da organização.

Nos dois extremos estão a aceitação da estrutura permanente, dotada dum programa bem definido, com recursos disponíveis (ainda que poucos) e dividida em comissões; e a rejeição de qualquer relação estável, mesmo no curto prazo.

As federações anarquistas clássicas (antigas e novas formas) e os individualistas constituem os dois extremos de algo que, no entanto, tenta escapar à realidade do confronto. O companheiro que adere às estruturas organizadas espera que uma modificação revolucionária da realidade emerja do crescimento quantitativo e se permite a ilusão barata de ter a certeza de controlar cada involução autoritária da estrutura e cada concessão à lógica do partido. O companheiro individualista tem ciúme do próprio ego e teme qualquer forma de contaminação, qualquer concessão aos outros, qualquer colaboração ativa, pensando nessas coisas como afundamentos e compromissos.

Mesmo os companheiros que confrontam criticamente o problema da organização anarquista e que, portanto, rejeitam o isolamento individualista mergulham no problema apenas em termos de organização clássica, dificilmente conseguindo pensar em formas alternativas de relações estáveis.

O grupo de base é visto como elemento essencial da organização específica e a federação entre grupos, com base no esclarecimento ideológico, se torna a consequência natural.

Desta forma a organização nasceu antes das lutas e acaba por se adaptar à perspectiva dum certo tipo de luta que – pelo menos se supõe – faz crescer a própria organização. Desta forma, a estrutura acaba por ser uma forma vicária em termos das decisões operacionais que são tomadas pelo poder, que por diversas razões domina o cenário do conflito de classes.

A resistência e a auto-organização dos explorados são vistas como elementos moleculares, que podem ser apreendidos aqui e ali, mas que só se tornam significativos quando se tornam parte da estrutura específica ou se permitem ser condicionados em organismos de massa sob a orientação (mais ou menos declarada) da estrutura específica.

Deste modo você permanece sempre em posição de espera. Todos nós estamos como se estivéssemos em liberdade provisória. Examinamos as atitudes de quem está no poder e estamos prontos para reagir (sempre dentro dos limites do possível) face à repressão que nos atinge. Quase nunca tomamos a iniciativa, impomos intervenções na primeira pessoa, derrubamos a lógica dos perdedores.

Aqueles que se identificam com organizações estruturadas esperam um crescimento quantitativo improvável. Aqueles que trabalham dentro de estruturas de massas (por exemplo, numa perspectiva anarcossindicalista) esperam que os pequenos resultados defensivos de hoje evoluam para o grande resultado revolucionário de amanhã. Quem nega tudo isso espera o mesmo, não sabe o quê, muitas vezes fechado no ódio contra tudo e todos, seguro das suas próprias ideias sem perceber que estas nada mais são do que a implicação negativa vazia das declarações organizacionais e programáticas de outros.

No entanto, nos parece que há muitas outras coisas a se fazer.

Comecemos primeiramente pela consideração de que é necessário estabelecer contatos entre companheiros para agir. Sozinhos não estamos em condições de agir, a menos que sejamos reduzidos a um protesto platônico, tão sangrento e terrível quanto quisermos, mas sempre platônico. Querer agir de forma incisiva sobre a realidade exige muita gente.

Com base em que você encontra outros companheiros? Descartando a hipótese de programas e plataformas a priori, elaborados de uma vez por todas, o que resta?

A afinidade permanece.

Existem afinidades e diferenças entre companheiros anarquistas. Não estou falando aqui de caráter ou de afinidades pessoais, ou seja, daqueles aspectos de sentimento que muitas vezes unem os companheiros (amor em primeiro lugar, amizade, simpatia etc.). Estou falando sobre aprofundar o conhecimento que vocês têm um sobre o outro. Quanto mais cresce esse aprofundamento, maior pode se tornar a afinidade, caso contrário até as divergências podem se tornar tão evidentes que impossibilitam qualquer ação comum.

A solução continua, portanto, a do conhecimento comum cada vez mais profundo, a ser desenvolvido através dum estudo aprofundado dos vários problemas sociais que a realidade das lutas de classes nos coloca.

Existe toda uma gama de problemas que, via de regra, não são explicados na sua totalidade. Muitas vezes nos limitamos aos problemas mais próximos porque são eles que mais nos afetam (repressão, prisões etc., em primeiro lugar). Mas é precisamente na nossa capacidade de alargar o leque de problemas sociais que reside o meio mais adequado para estabelecer as condições de afinidade comum, que certamente não pode ser absoluta ou total (salvo em casos muito raros), mas pode ser suficiente para estabelecer relações aptas para a ação.

Ao restringirmos as nossas intervenções a alguns problemas que consideramos imediatos e essenciais, nunca teremos oportunidade de descobrir as afinidades que nos interessam, e vagaremos sempre à mercê de contradições repentinas e insuspeitadas, capazes de perturbar qualquer projeto de intervenção na realidade.

Insisto que não devemos confundir afinidade com sentimento. Podem existir companheiros com quem nos reconhecemos semelhantes mas de quem não gostamos muito e, vice-versa, companheiros com quem não temos afinidade e que ganham a nossa simpatia por vários outros motivos.

É necessário, entre outras coisas, não ser impedido na ação por falsos problemas, como o da suposta diferenciação entre sentimentos e motivações políticas. Pelo que foi dito acima, pode parecer que os sentimentos são algo a ser mantido separado das análises políticas, de modo que poderíamos, por exemplo, amar uma pessoa que não concorda em nada com as nossas ideias e vice-versa. Isto é, em princípio, possível, por mais doloroso que seja. Porém, no conceito de aprofundamento do leque de problemas, conceito expresso acima, o aspecto pessoal (ou, se preferir, os sentimentos) também deve ser incluído, pois sucumbir instintivamente aos nossos impulsos é muitas vezes uma falta de reflexão e de análise, não sendo capazes de admitir que estão simplesmente possuídos por Deus.

Do que foi dito emerge, ainda que de forma nebulosa, uma primeira aproximação da nossa forma de considerar a organização informal: um grupo de companheiros ligados por afinidade comum.

Quanto maior for o leque de problemas que estes companheiros enfrentarão juntos, maior será a sua afinidade. Segue-se que a organização real, a capacidade efetiva (e não fictícia) de agir em conjunto, ou seja, de se encontrar, de estudar um aprofundamento analítico e passar à ação, está em relação à afinidade alcançada e nada tem a ver com as siglas, programas, plataformas, bandeiras e partidos mais ou menos disfarçados.

A organização anarquista informal é, portanto, uma organização específica que se reúne em torno de afinidades comuns. Estes não podem ser idênticos para todos, mas os diferentes companheiros terão infinitos matizes de afinidade, quanto mais variados for maior será o esforço de aprofundamento analítico alcançado.

Conclui-se que o grupo destes acompanhantes também terá uma tendência para o crescimento quantitativo, mas limitado e não constituindo o único objetivo da atividade. O desenvolvimento numérico é essencial para a ação e também a prova da amplitude da análise realizada e da sua capacidade de descobrir gradativamente afinidades com um maior número de companheiros.

Segue-se também que o organismo assim criado acabará por se dotar de meios comuns de intervenção. Em primeiro lugar, um instrumento de debate necessário para um aprofundamento analítico, capaz, na medida do possível, de fornecer indicações sobre um conjunto muito vasto de problemas e, ao mesmo tempo, de constituir um ponto de referência para a verificação – sobre pessoal ou em pequenos grupos – afinidades ou cinco referências que vão surgindo gradativamente. Nesta perspectiva, é um desperdício criar estruturas permanentes para resolver problemas específicos. Estas devem ser sempre vistas através do nível global alcançado pela análise e abordadas com intervenções precisas e com um propósito a ser alcançado, limitadas às possibilidades de cada um e não dimensionadas vagamente na dimensão do problema a ser enfrentado. É lógico que nestas intervenções específicas também possam ser estabelecidas estruturas, mas apenas com a intenção de envolver os explorados como um todo e não como um elemento de crescimento do movimento específico. Caso contrário, voltamos à perspectiva dos peregrinos em busca de refúgio.

Por último, é preciso dizer que o elemento que une uma organização informal deste tipo é, sem dúvida, a afinidade, mas a sua força motriz é a ação. Ao nos limitarmos ao primeiro elemento e deixarmos o segundo aspecto subdimensionado, toda relação seca no perfeccionismo bizantino de quem não tem nada para fazer, mas tenta esconder o desejo de não fazer nada.

Os problemas que são simplesmente mencionados aqui, especialmente os positivos duma organização anarquista informal, merecem um estudo e debate mais aprofundados, para os quais convidamos todos os companheiros interessados.

Tradução: Inaê Diana Ashokasundari Shravya

Fonte: Bonanno, Alfredo M. Affinità e organizazzione informale <publicado em: https://feartosleep.espivblogs.net/2012/07/11/affinita-e-organizzazione-informale-di-alfredo-m-bonanno/>