Nação ou Classe? | Agustín Guillamón

Embora este texto do Agustín Guillamón seja de 2013 e sobre a situação da Espanha, ele parece também algo sobre a situação brasileira dos últimos anos. Basta lembrarmos como, num suposto combate ao fascismo personalizado na figura do Bolsonaro, o delírio socialdemocrata de que apertar um botão resolveria tudo (e não apenas se aperta um botão para votar, mas também se confirma a sua própria submissão e docilidade ao apertar o botão verde) tomou a maioria das organizações de “esquerda”. Falou-se em tom realmente delirante de quando o “pobre” podia pegar avião ou pagar por um plano de saúde, mas não se criticou as privatizações realizadas por esse tal ”governo do povo”, pois não se podia e nem pode criticar, apenas acatar docilmente até a privatização de presídios.

“Governo do povo” ou governo que administra a pobreza? O problema está no nosso comprometimento com a socialdemocracia. O medo que o fascismo promove nos conduz desesperadamente à socialdemocracia, pois sequer somos capazes de esboçar saídas realmente revolucionárias ao problema. As organizações que se autodenominam revolucionárias deveriam ter um caráter mais propositivo, mas sempre recuam 10 passos (um exemplo é o caso da ocupação do Carrefour realizada pelo MLB; além de não interferir de fato a dinâmica interna do supermercado, não insistiu na sua crítica ao mesmo, embora ele permaneça apoiando o Estado de Israel).

Mas não seria exatamente a paranoia socialdemocrata com seus inimigos cada vez mais internos e sua docilização eficiente o que mantém o espírito do fascismo?

Boa leitura!

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1. O que é o nacionalismo? Classe ou nação?

Nas Faculdades de Ciências Políticas se estudará como exemplar a deriva independentista de Convergència i Unió (CiU), durante o período 2012-2013. Artur Mas, presidente da Generalidade da Catalunha, atravessou todas as linhas vermelhas da prudência, da manipulação e do “bom governo”, se é que isso existe.

Um governo autônomo, caracterizado pelos seus ferozes cortes da saúde pública, da educação pública e dos serviços sociais, que se vangloriava de fazer esses ajustes com anterioridade e maior profundidade que o governo de Madrid, e que convertia tais ataques contra os trabalhadores e o povo catalão numa política orientada à privatização do ensino e da saúde, com o objetivo preciso de converter em negócio privado o que até então foram serviços públicos fundamentais, estava destinado a obter um profundo rechaço popular e um grande fracasso eleitoral.

Um governo autônomo, marcado por diversos processos judiciais, eternamente pendentes, todo mundo suspeita do porquê, omertà [1] mediadora e máfia operante. Como os quatro por cento, repartidos por Millet em um e meio para o seu bolso e em dois e meio para os seus protetores. Como o da corrupção e roubo sistemático dos hospitais de Lloret e outros de Gerona, que acabou com o processo dos redatores da revista que denunciou tais excessos. Como o escândalo das concessões de licenças de ITV ao melhor licitante, fora de concurso público, pelo qual é réu Oriol Pujol. Trata-se dum amplo etcétera de casos judiciais, a qual mais grave, que tiveram a virtude de revelar a existência duma corrupção sistemática desse governo autônomo. E, a menos que uma decisão seja tomada a seu favor pelas autoridades judiciais, que devem ser assumidas como independentes de qualquer pressão dos poderes executivo e legislativo, esse governo autônomo catalão estava destinado a obter um enorme rechaço popular e um grande desastre eleitoral.

Esse governo autônomo, incapaz de encarar os problemas reais da economia e da sociedade, que além do mais apontava para uma pronunciada deriva fascista na brutal repressão do mal-estar cidadão na rua, com a colocação em jogo de grupos policiais de provocadores entre os manifestantes pacíficos, estava destinado a ser derrotado nas urnas, pela sua manifesta incompetência.

Mas um milhão e meio de pessoas, sabiamente direcionadas e canalizadas, se manifestaram no último 11 de setembro de 2012 em Barcelona, a favor de que a Catalunha “tenha um Estado próprio dentro da Europa”. Este acontecimento esteve em foco de muitas leituras diferentes, todas elas falsas: é viável a independência da Catalunha? Por quê a Catalunha pretende “se divorciar” da Espanha? Os catalães viverão melhor com a independência? É verdade que a Catalunha contribui mais para a Espanha do que recebe desta? Deveria se tornar um Estado federal?

No dia 11 vimos Felip Puig, conselheiro de interior da Generalidade catalã, impulsor duma violenta repressão contra as manifestações massivas do ano passado, conspirador de provocações policiais sombrias contra os manifestantes, desfilar rodeado amistosamente pelas suas vítimas, jovens desempregados ou precarizados. Vimos 9 dos 11 conselheiros dum governo, que foi pioneiro em aplicar cortes cruéis na saúde e na educação, andar lado a lado com as suas vítimas: os desprezados e maltratados professores e estudantes; as enfermeiras ou médicos que perderam mais de trinta por cento dos seus salários, ou os usuários que tinham que pagar um euro cada vez que iam à consulta (taxa que não se aplicava no resto do Estado espanhol, exceto Madrid). Vimos empregadores, policiais, padres, políticos, líderes sindicais e outros vampiros, dividir a rua com as suas vítimas: desempregados, trabalhadores, aposentados, emigrantes… Uma atmosfera de UNIÃO NACIONAL presidiu a concentração. O Capital se fez acompanhar pelas suas vítimas, as convertendo em tontos úteis de seus objetivos egoístas, elitistas e nacionalistas.

O Capital! Esse sim que não tem pátria, é internacional e internacionalista.

Crise, cortes e ataque às condições de vida dos trabalhadores desaparecem do panorama político e eleitoral catalão, engulidos por vazias e estúpidas discussões entre o novíssimo independentismo catalão e o rançoso centralismo da região de Meseteño, impregnando até a medula do obsoleto ideário da disciplina franquista da FEN (Formación del Espíritu Nacional), que produz urticária na periferia das Espanhas. [2]

É possível que uma parte importante dos presentes na manifestação do 11 de setembro de 2012 não compartilhasse o objetivo da independência; talvez estivesse ali porque estão fartos de cortes, de desemprego, de não ter nenhum futuro. Mas, por arte de birlibirloque, magia trapaceira de jogador de tampinha [3] e, mediante manipulação, esse mal-estar contra o atual governo da Generalidade foi canalizado a seu favor. Foi o suficiente para eles se envolverem na senyera [4] e bradar palavras de ordem em defesa da pátria catalã. A raiva popular contra os cortes, contra a corrupção, contra a privatização da escola e saúde públicas, contra as práticas fascistas da repressão policial, desapareceram como faz um mágico com os ases do baralho. Já se sabe que para não cair da bicicleta a única coisa que se pode fazer é seguir pedalando, cada vez mais rápido. E se também, à frente, os catalanistas se encontrem com um governo centralista e centralizador, mais ranço inútil e autoritário que a finada Falange, chove sobre o molhado. O nacionalismo catalão multiplica o seu público graças ao nacionalismo espanholista, e ambos ganham nesse enfrentamento ideológico que desvia o proletariado (trabalhador desempregado, precarizado, aposentado ou aterrorizado) dos seus problemas reais. A venda de conversa fiada e ilusões, como faz a loteria, demonstra ser um bom negócio político.

O governo de CiU tirou o coelho independentista da cartola e, com isso, conseguiu transformar os cortes orçamentários, a corrupção generalizada, O ATAQUE GENERALIZADO CONTRA AS CONDIÇÕES DE VIDA DA CLASSE OPERÁRIA, as demissões em massa, o desemprego com o seu desespero (que conduz muitos ao suicídio) ou o assalto privatizador contra a saúde e ensino públicos, na defesa da NAÇÃO catalã. Independência já!

A venda de quimeras, miragens, enganos, delírios, sonhos e, em suma, de esperança, conseguiu que no ano seguinte, em 11 de setembro de 2013, uma imponente corrente humana unisse a Catalunha do norte, ou Catalunha francesa, com a Catalunha do sul, ou Valência. Um sentimento independentista generalizado, realmente massivo e utópico, levou às ruas uma imensa multidão de catalães, desencantados e confrontados com a estúpida arrogância e imobilismo dum governo central e centralista, obsoleto, caduco, rançoso, frustrante, fascistoide e gagá.

Futuros heróis e criminosos de guerra de todas as pátrias já se erguem num horizonte no qual se delineiam massacres como o do cerco de Sarajevo, o bombardeio de Belgrado ou os cem mil mortos da guerra servo-croata. E, como na extinta Iugoslávia, tudo começa nos meios de comunicação e nas TVs de uns e outros. A autêntica pergunta, a única questão real é: Classe ou nação?

Se o proletariado luta sob bandeiras que não são as suas, seja coreana, chinesa, francesa, japonesa ou a da Corte Inglesa, será derrotado, porque o nacionalismo, seja ele sérbio, croata, escocês, flamenco, quebequense, europeu ou “la Caixa”, é alheio às suas necessidades e interesses, porque REFORÇA o Capital e todas e cada uma das suas frações. É possível que avive as contradições entre eles, mas essas contradições se canalizam dentro da sua crise, das suas guerras, dos seus conflitos mafiosos, das suas brigas de família, bando ou seita, isto é, passam a fazer parte da engrenagem de barbárie e destruição com o qual o sistema capitalista prenda a humanidade.

A nação não é a comunidade de todos os nascidos na mesma terra, mas o latifúndio privado do conjunto de capitalistas através do qual a exploração e a opressão dos seus “amados concidadãos”. Não é nenhuma casualidade que o lema das manifestações independentistas tenha sido que “Catalunha tenha um Estado próprio”. A nação, essa palavra “cativante”, é inseparável desse monstro, nada cativante, frio e impessoal, que é o Estado, com os seus cárceres, seus tribunais, seus exércitos, suas polícias, sua burocracia. Artur está dizendo a Mariano: “no meu latifúndio só roubo eu”.

Que não reste um! Se ninguém nos representa, somente nós podemos decidir.

O senhor Mas prometeu um referendo com uma dupla pergunta: “Você quer que Catalunha seja um Estado? Se sim, independente?”. Tanto Mas quanto seus colegas espanhóis querem nos fazer escolher entre três opções, o que é pior: Quer que os ajustes e os cortes sejam aplicados pelo Estado espanhol? Quer que impostos no âmbito da “construção nacional da Catalunha”? Ou quer que sejam incentivados conjuntamente o Estado espanhol e o aspirante catalão?

O Capital na Espanha conta com várias pátrias para impor a mesma miséria.

2. O que é o Estado nacional?

O nacionalismo não é o patrimônio exclusivo da Direita e da extrema direita, é o terreno comum que partilha o arco político que vai desde a extrema direita à extrema esquerda, e que inclui também às chamadas “organizações sociais” (Empregadores e Sindicatos).

O nacionalismo de Direita, atado a símbolos repugnantes e a uma agressividade repelente contra o estrangeiro (xenofobia), é pouco convincente para a maioria dos trabalhadores (salvo setores muito atrasados). O nacionalismo de Esquerda e sindicatos tem mais charme pois aparece como mais “aberto” e mais próximo aos assuntos cotidianos. Assim, o discurso nacionalista da Esquerda nos propõe uma “saída nacional” à crise, para o que pedem uma “distribuição justa” dos sacrifícios. Isto, além do fato de que justifica os sacrifícios com a sedução de “fazer pagar os ricos”, nos inocula a visão nacionalista, pois nos apresenta uma “comunidade nacional” de trabalhadores e patrões, de exploradores e explorados, todos unidos pela “rubrica Espanha”. A essa comunidade nacional os trabalhadores só podem opor a comunidade de luta mundial de todos os proletários contra a barbárie e a miséria capitalistas.

Outro dos discursos preferidos da Esquerda e dos sindicatos é que “Rajoy impõe os cortes porque não defende a Espanha e é um criado de Merkel”. A mensagem que se destaca é que a luta contra os cortes seria um movimento nacional contra a opressão alemã, e não como o que é: um movimento pelas nossas necessidades contra a exploração capitalista. Além do mais, Rajoy é tão espanholista quanto foi Zapatero, ou como seria um hipotético governo de Cayo Lara. Eles defendem Espanha impondo sangue, suor e lágrimas aos trabalhadores e à grande maioria da população.

As mobilizações sindicais de 15 de setembro de 2012 foram convocadas porque “querem afundar o país”, o que significa que nós trabalhadores devemos lutar não pelos nossos interesses, mas para “salvar o país”. Isto nos coloca no terreno do Capital, o mesmo que Rajoy, quem pretende salvar a Espanha às custas do sangrento sacrifício dos trabalhadores no altar da austeridade.

Os grupos que ficaram com “a marca do 15-M” [5] defendem coisas “mais radicais”, mas não menos nacionalistas. Dizem que temos de lutar pela “soberania alimentar”, o que quer dizer que temos de produzir espanhol e consumir espanhol. Do mesmo modo, falam de fazer “auditoria da dívida”, para recusar aquelas dívidas que “foram impostas ilegitimamente a Espanha”. Uma vez mais, educação nacionalista pura e dura. Esquerda, sindicatos/Estado UGT/CCOO e os restos pútridos do 15-M realizam um trabalho metódico de “formação do espírito nacional”. Nos tempos do Franco a disciplina de Formación del Espíritu Nacional era obrigatória, hoje, de todos os palanques nos transmitem democraticamente, nos fazendo engoli-la queiramos ou não.

A chatice nacionalista tem como fim colocar os trabalhadores uns contra os outros. Aos trabalhadores alemães, que estão recebendo um salário de 400 € e aposentadorias de 800, lhes é dito que os sacrifícios são culpa dos trabalhadores do Sul da Europa: “uns preguiçosos que têm vivido acima das suas possibilidades”. Mas aos trabalhadores da Grécia é dito que a sua miséria é causada “pela manutenção dos privilégios e luxos dos trabalhadores alemães”. Em Paris dizem aos trabalhadores que é melhor que haja demissões nas sucursais de Madrid para que não sejam impostas na França.

Como se vê, nos amarram com um nó górdio de mentiras que é preciso romper, compreendendo que a crise é mundial, o desemprego é mundial, os cortes ocorrem em todos os países. Mas o enfoque nacional com o qual nos pisam incita que somente vejamos os setecentos mil desempregados da Catalunha ou no máximo os cinco milhões na Espanha, em vez de ver os mais de 200 milhões no mundo. Que só vejamos os cortes na Catalunha e na Espanha e não vejamos os dois pacotes de cortes que se impuseram, por exemplo, aos trabalhadores “privilegiados” da Holanda. Que só vejamos a “nossa miséria” e não a miséria mundial. Quando tudo é visto segundo a estreita, mesquinha e excludente ótica nacional, se tem a mente preparada para crer em contos da Carochinha como o que propaga o presidente Mas de “se pagassem os 10.000 milhões que se devem a Catalunha não haveria necessidade de se fazer cortes”, versão regional de “se a Espanha não estivesse tão pressionada pela Alemanha teria dinheiro para saúde e educação”.

Todos mentem, pois ninguém tem solução para a atual crise dum capitalismo que hoje entrou em sua fase terminal, que é obsoleto e que só pode oferecer miséria e barbárie. Tudo indica que, para além das flutuações conjunturais que se apresentam diante de nós, se abre a perspectiva duma descida inexorável aos infernos.

As democracias parlamentares, mais ou menos efetivas, têm seus dias contados: essas políticas de austeridade, esses cortes brutais, essas privatizações do setor público… estão pedido aos gritos regimes autoritários e um fascismo que imponha abertamente sacrifícios inauditos no altar das pátrias e da guerra contra os incontrolados de sempre. Em resumo: à unidade nacional os trabalhadores devem opor sua comunidade de luta mundial contra a barbárie e a miséria capitalistas.

Agustín Guillamón

Barcelona, dezembro de 2013

NOTAS:

[1] Omertà, também conhecida como lei do silêncio, é um termo da língua napolitana que define um código de honra de organizações mafiosas do Sul da Itália. A omertà é composta por um sentimento familiar forte e uma lei do silêncio que impede a cooperação com autoridades policiais ou judiciárias. [N.T.]

[2] Formação do espírito nacional (FEN) era o nome duma disciplina obrigatória no plano de bacharelado de 1953 durante o franquismo. Seu propósito explícito era a aquisição de valores nacionalistas espanhóis próprios do Movimento Nacional. A disciplina era planejada pelo partido único do regime franquista, a Falange Española Tradicionalista y de las Juntas de Ofensiva Nacional Sindicalista (FET y e las JONS ou FET-JONS). Segundo Rafael Valls, no seu livro “Ideología franquista y enseñanza de la historia em España” (1986), antes de 1938, era a disciplina de História que cumpria essa função, segundo a Lei do Bacharelado de 1938. [N.T.]

[3] Por arte de birlibirloque significa por arte de magia, por encantamento, algo que foi realizado sem explicações racionais. O jogo de tampinha, por sua vez, se refere à trapaça, à enganação e ao golpe. [N.T.]

[4] Senyera é o nome que se dá à bandeira da Catalunha. [N.T.]

[5] 15-M se refere ao Movimiento 15-M, Indignados, que nas redes sociais era conhecido como Spanish revolution. A denominação de Movimiento 15-M é exógena a esse movimento, sendo uma atribuição de alguns meios de comunicação espanhóis para se referir aos protestos iniciados em 15 de maio de 2011 na Espanha, perto das eleições. Eram manifestações reivindicatórias pacíficas que haviam sido puxadas inicialmente pela página ¡Democracia Real YA! E que buscavam mudanças na política e na sociedade espanholas. Para esses manifestantes, os partidos políticos não os representavam e tampouco tomavam medidas que o beneficiavam. O manifesto do ¡Democracia Real YA! Pode ser encontrado online em: <https://www.forumjustica.com.br/wp-content/uploads/2013/02/O_manifesto_Democracia_Real_Ya.pdf>

Tradução: Inaê Diana Ashokasundari Shravya