Eu conheço um lugar | Marina Garcés

O texto de autoria de Marina Garcés é duma sensibilidade incrível e arrepiante. Ele nos faz pensar em como a formação dos Estados-Nação resultou numa diminuição das nossas potências e das nossas capacidades de agir, ao nos reduzir a cidadãos da civilização capitalista, indivíduos dotados de direitos à custa duma vida sufocada por deveres que nos posicionam como inimigos e faz circular a desconfiança que garante a nossa submissão. Nem é preciso muito, bastando lembrar das guerras e dos seus efeitos: nelas, são os corpos proletarizados, igualmente racializados e feminizados os que decididamente são violentados pelas guerras em nome de bandeiras tecidas com as vísceras e tingidas com o sangue dos seus mortos.

Tenha uma boa leitura!

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O verão é uma boa época para parar de viajar e redescobrir lugares. Hoje, 31 de agosto, passo a última tarde onde estive durante a maior parte destas semanas quentes: no sopé duma montanha muito dura e à beira-mar. Ao dar uma última olhada no perfil desta cordilheira e sentir o vento norte aumentar, me pergunto o que faz de um lugar um lugar e o que o faz não ser um lugar.

Num artigo para a publicação de Espai en Blanc deste ano, “Un esfuerzo más”, o meu amigo Carlos Marquerie, castelhano de Castela, encabeça a sua escrita com os versos “Diante de mim está a terra retorcida e taciturna a que pertenço. O homem pertence a uma paisagem e não a um país.” Ao olhar para o relevo bestial destas montanhas e para os ângulos mortíferos das rochas deste mar, sinto que as suas palavras são também minhas, embora se refiram a paisagens tão distantes e tão diferentes.

Pertencer a uma paisagem não é fazer parte duma imagem de cartão postal. Uma paisagem é um conjunto de elementos que mantêm uma relação significativa… para alguém. “Eu conheço um lugar… para você”, cantava Triana [1]. Não importa se estes elementos são blocos de cimento naturais ou altos, espaços com horizontes amplos ou recantos estreitos duma cidade indefinida, rostos habituais ou traços remotos, modos de falar ou modos de permanecer em silêncio. O que importa é a relação entre os elementos e seu significado. Ninguém pode saber onde pode existir uma paisagem à qual alguém pertence. Ninguém sabe onde começam e onde terminam os mundos que nos acolhem. Somos todos, se quisermos, criadores de paisagens nas quais podemos criar um lugar para nós mesmos. Podemos fazer-lhes vida clandestinamente, abri-los para partilhá-los com outros ou deixá-los abertos aos significados que os outros possam lhes dar. Ninguém pertence da mesma forma ao mesmo lugar.

Isto é o que os países não podem fazer, o que os países não permitem. É por isso que “o homem pertence a uma paisagem, não a um país”. Os países incluem determinados cidadãos e as suas funções, administrações, orçamentos e estatutos, forças policiais, exércitos, símbolos e códigos de identidade. Mas homens e mulheres? E as crianças que neste momento correm pelas ondas cada vez mais fortes? De que país são? Eles não são de nenhum país, lamento dizer, não podem ser. Pertencem aos seus lugares, às suas gentes e às suas paisagens, às que talvez partilhamos e às que não conheço, às da sua infância e às que ainda não criaram.

No ano passado, o cume desta montanha que vejo agora e a praia abaixo estavam cheios de bandeiras. Elas estão por toda parte, embora o vento norte não as deixe intactas por muito tempo. São bandeiras que apontam um caminho, que traçam um caminho para um novo país. Um país que quer ser apenas mais uma caixinha, ou melhor, um pequeno triângulo, na arbitrariedade dum planeta, convertido, com sangue e ferro, num mapa mundial. Houve um tempo em que havia quem se declarasse apátrida, como forma de compromisso com a humanidade e com o resto dos seres deste recanto do universo. Ser apátrida não era uma fuga ou um refúgio na neutralidade. Foi uma forma de deserção e de combate: deserção das pátrias e combate por um mundo comum, pelo mundo dos lugares para viver e não pelo mundo dos Estados assassinos. Ser apátrida é declarar que a história dos países não é a nossa, mas que sempre foi construída contra nós. As bombas tóxicas deste verão nos lembram disso. Já faz um tempo que não ouço essa palavra e agora, ao olhar para a montanha e não conseguir mais abrir os olhos direito por causa de tanto vento, penso que sou decididamente apátrida, não porque não pertenço a lugar nenhum, mas precisamente porque pertenço a lugares como este e pertencerei, até mesmo a muitos outros. Abandonar países para criar e dar uns aos outros um lugar no mundo: não seria um bom programa? Embora não seja novo, não consigo imaginar outro ponto de partida melhor para um programa político exigente e comprometido com os desafios do mundo em que vivemos hoje. E não só isto: não consigo imaginar nenhum outro tão justo e tão necessário.

 

NOTAS

[1] O título deste texto faz menção à canção “Sé de un lugar”, da banda andaluz Triana, que mesclava rock progressivo e flamenco. Ela foi escrita por Jesús de la Rosa e lançada no primeiro álbum banda. O álbum não possui um título, mas é popularmente conhecido como “El Patio” (numa clara referência à fotografia da capa), gravado no Estudios Kirios, em Madrid, e lançado em 14 de abril de 1975. A letra parece tratar de um jovem apaixonado declarando amor à sua amada, mas um pouco de atenção nos permite perceber que trata de algo maior: a expansividade do amor e a promessa dum novo mundo mais afetuoso, onde inclusive rio e montanha se amam.  Marina Garcés traz essa canção como forma de nos chamar a atenção para o fato de que as fronteiras nacionais e o patriotismo fazem circular afetos que diminuem a nossa potência. Numa metáfora geográfica e em consonância com a proposta da autora: as cordilheiras, sob o patriotismo, se tornam divisas de pedras, ao passo que numa situação apátrida elas são ressignificadas como pontos de encontro entre a terra e as nuvens, entre o olhar e o horizonte. É possível ouvi-la clicando no nome dela nesta nota.

 

Tradução: Inaê Diana Ashokasundari Shravya