Na Rússia o bolchevismo renovou de maneira radical e sistemática os sistemas representativos.
O valor de tais reformas ultrapassa os limites da revolução russa tanto pela influência que têm sobre o pensamento político de outras nações como por suas origens ideológicas.
O regime bolchevique é o experimento mais prático e numa escala maior da democracia integral que tinha como expoentes, entre muitos outros, Rittinghausen na Alemanha, e Considerant e Leverdays na França.
O regime dos Sovietes é uma derivação da autonomia federalista e é a antítese da tendência centralizadora do socialismo de Estado: não é mais que um sistema político cujas linhas gerais e fundamentais se encontram os esboços político-filosóficos dos principais pensadores da França revolucionária e democrática.
Quem quer estudar as origens ideológicas da autodemocracia deveria se voltar às correntes de ideias preparatórias da revolução francesa e descobriria que um dos princípios canônicos da Grande Revolução foi que “a soberania do povo é absoluta e inalienável”.
Segundo os pensadores da revolução francesa, o próprio regime representativo é uma forma de aristocracia, tudo o efetiva que se queira, mas na que é a verdade dos deputados e não a vontade geral que faz a lei. No Estado bem ordenado os cidadãos devem governar sem intermediário; a res publica e a lei devem ser a expressão da vontade geral, porque a vontade geral tende ao benefício de todos, enquanto que as vontades particulares se extraviam e corrompem facilmente pelos interesses privados.
A democracia de Locke e o absolutismo de Hobbes se unirão em Rousseau e produzirão, durante a revolução ativa, o jacobinismo.
Alguém poderia observar que o Rousseau republicando considera a “democracia” como o governo no qual a massa do povo gesta diretamente os assuntos coletivos; o Rousseau liberal-moderado afirma que a democracia só se pode adotar em pequenos Estados, cuja estrutura é similar à dos estados da antiguidade. Mas esta observação não tem valor crítico, posto que o federalismo é descentralizador e autonomista por excelência.
O governo, segundo Rousseau, deve ser o mandatário e o executor da vontade geral e só com esta condição é legítimo; “de onde se segue que os depositários do poder executivo não são os amos do povo mas seus funcionários, que o povo pode lhes designar e lhes destituir quando creia conveniente, que seu dever não é tratar com o povo mas lhe obedecer”.
Quais foram os aspectos originais da autodemocracia?
A autodemocracia nasceu em oposição ao parlamentarismo, como se segue do que escreveu Rittinghausen no século XIX, invocando e propondo um novo sistema representativo: “Como quereis que o cidadão que se converte em legislador, quer dizer privilegiado, não vá de cabeça ao partido dos privilegiados, dos monopólios e, consequentemente, da reação, se o monopólio e o privilégio só podem viver reduzindo à impotência e ao mais completo silêncio a todos aqueles que expropria, seja este silêncio o da prisão ou o da tumba”.
As palavras de Rittinghausen coincidem com as que Proudhon escreveu em seu Ideia geral da revolução do século XIX: “Abundam os exemplos de personagens escolhidos por aclamação e que na tribuna na qual se oferecem aos olhares do povo excitado preparam já a trama da sua traição. É muito se a cada dez patifes o povo encontra nas eleições um homem honrado. Mas além do mais, que importam para mim estas eleições? Que necessidade tenho de mandatários e de representantes? Pois se é necessário que afirme a minha vontade, não posso expressá-la sem ajuda de ninguém? Por acaso me custará mais ou não estarei mais seguro de mim mesmo que do meu advogado?”
Victor Considerant também foi um dos primeiros a responder ao chamado que chegava da Alemanha e escreveu no seu Livre des Quattres Crèdits: “A ideia da legislação direta fará seu caminho. Reconhecer-se-á, estou convencido disto, que as leis feitas por todos e o poder autodemocrático do povo são ainda mil vezes preferíveis a todo tipo de despotismo”.
Este conceito foi desenvolvido amplamente pelo próprio Considerant na sua obra O regime dirigido pelo povo, no qual proclama: “Até agora as massas humanas, os povos tiveram amos, sempre amos, sob diferentes denominações e aparências. Só serão livres quando não tiverem amos sob nenhuma forma… O Governo do povo pelo povo, portanto toda a democracia. A delegação jogou para nós, não mais delegações! Exercício direto da soberania do povo para o povo”.
Noutra obra, Dêbacle de la politique en France, Considerant se alça contra “os saltimbancos e equilibristas da política”.
O golpe de Estado bonapartista freou este simpático movimento.
Mais tarde, Leverdays retomou a tese com duas obras: As assembleias deliberativas e A organização da república, mas pregou no deserto.
Passaram-se muitos anos desde o tempo no qual a democracia tinha em seu seio tendências tão vastas e inovadoras; e o parlamento foi julgado e condenado não só por uma elite consciente, mas pelas massas populares. A escandalosa incompetência, a facilidade para se deixar corromper, o carreirismo dos representantes do povo desacreditaram o parlamento e o parlamentarismo, e se não se encontra remédio a tantos males produzidos pelo atual sistema representativo nas inovações propostas pelos atuais defensores da democracia direta, é preciso levar em conta o seu programa. Considerável, por exemplo, é o programa compilado por um grupo de democratas franceses, capitaneados por Hermitte, cujas linhas principais estão contidas nestas palavras: “Não se trata certamente, sob o Regime Diretivo, de por todos no leme. Para a boa execução da manobra e da manutenção da ordem no navio, o leme deixar-se-á sempre nas mãos do capitão responsável, mas os viajantes, que não são nem gado nem mercadoria, conservam o direito de dizer aonde e como querem ir”.
Todos em suas posições, todos responsáveis: é isto o que quer a autodemocracia deste grupo democrático.
Acredito que a instituição de clubes populares, nos quais todas as questões sociais fossem livre e seriamente discutidas, permitiria ao povo ser capaz de tomar parte ativa, direta e fecunda nos assuntos da comunidade, de poder exercer um controle rigoroso e justo sobre o funcionamento dos órgãos sociais.
Todos os que afirmam o direito do povo de afirmar sua própria vontade em relação aos sistemas de vida política devem estudar entre os problemas atuais, o da autodemocracia, que poderia ser um bom objetivo para as ofensivas dos partidos de vanguarda, que poderiam direcionar os seus esforços para um objetivo comum: a emancipação dos trabalhadores com relação à oligarquia demagógica.
O futuro poderá elogiar o valor prático da autodemocracia. Hoje é bom conhecê-la em suas linhas gerais se não se quer cair no erro dos atuais democratas que excluem a priori toda ideia e experimento de autogoverno popular que chegue da Rússia dos Sovietes, este imenso campo experimental do socialismo.
Publicado originalmente em: Volontà | 1° de junho de 1919
Tradução: Inaê Diana Ashokasundari Shavya