Um novo ataque foi realizado da parte do Estado contra as pessoas com capacidade de gestar (mulheres cis, homens trans, pessoas transmasculinas e não-binárias). A equiparação do aborto de fetos após 22 semanas ao crime de homicídio simples é parte da dinâmica do Estado, que tenta a todo custo atribuir à vítima a responsabilidade pela violação ocorrida, não uma falha ou sintoma de que ele não esteja funcionando. O Estado opera em prol do Capital, não da população do território que domina. É importantíssimo reforçar isto: o Capital necessita da sujeição dos corpos para a sua existência parasitária. Desde a acumulação realizada através do colonialismo, marcado por estupros de corpos indígenas e africanos, o que temos é a violação constante dos corpos socialmente valorizados como femininos e daqueles com capacidade de gestar.
Não é de surpreender que o estupro de repente se depare com a possibilidade de ser amparado pela lei, pois ele já se encontra inscrito em cada linha da história deste território dominado pelo Estado brasileiro. Reiteramos, é exatamente disto que se trata a PL 1904/2024: o aval legislativo do estupro. A tramitação em regime de urgência já é sintomático da desgraça que nos chega ao pescoço. Sófocles – coincidentemente portador do mesmo nome do criador do Édipo e um claro restaurador da família edipiana – Cavalcante (PL-RJ) foi o autor desse projeto nefasto. 31 outros deputados assinaram essa peça snuff, dentre eles o já conhecido Nikolas Ferreira (PL-MG) e a Carla Zambelli (PL-SP). Coronel, capitão, delegado, pastor são títulos que figuram entre os deputados em questão.
É no mínimo curioso que aqueles mesmos da Extrema Direita que até ontem afirmavam fervorosamente que a oposição à utilização do banheiro por pessoas trans de acordo com a sua identidade de gênero – considerando-se, claro, que para essas pessoas a segregação por gênero dos banheiros nada mais é que uma forma de vigiar e controlar os corpos, pois, afinal de contas, cagamos e mijamos de maneiras diferentes de acordo com os nossos gêneros, certo? Que o sistema de gênero vá à merda, portanto! – significava a proteção de mulheres cis e crianças das ameaças de estupro que mulheres trans representariam pelo simples fato de possuírem um pau. Esses mesmos deputados e defensores da Extrema Direita agora defendem que a vítima de estupro deva ser punida caso engravide e queira interromper a gravidez totalmente indesejada – o que parece conter um ranço lodaçal do mito da miscigenação que vagueia pelas cabeças de teóricos que tentam eufemizar, à maneira do PT – como veremos adiante -, as violências sofridas pelas pessoas com capacidade de gestar. A preocupação nunca foi com crianças e mulheres cis. A suposta preocupação com elas simplesmente foi empregada taticamente para barrar a possibilidade de pessoas trans utilizarem banheiros. Depois de instrumentalizadas, agora são elas – embora não só, e por isto empregamos o termo pessoas com capacidade de gestar, pois nem toda mulher gesta e há homens e pessoas não-binárias que gestam – que sofrem o ataque.
O Partido dos Trabalhadores (PT), que os sociais-democratas acreditam ser um exímio apoiador das pessoas com capacidade de gestar e forçam o fechar dos olhos para não enxergarem a conciliação de classe – e consequentemente, um real prejuízo para as pessoas com capacidade de gestar- que aquele propõe, quer “suavizar” – como bom conciliador que é- o projeto de lei. Que “suavização” seria essa? Que o projeto passasse a proibir especificamente os casos de assistolia. Para quem não sabe, ela se trata de uma técnica que interrompe os batimentos cardíacos do feto em gestações avançadas. É inclusive recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), sobre a qual não nos deteremos neste texto. Mas há uma “suavização” de fato? Na prática, proibir a assistolia corresponde a proibir o aborto do feto após 22 semanas. Ou seja, querem apenas que a coisa não pareça tão ruim assim para as pessoas com capacidade de gestar. Não estamos interessades em eufemismos para a violação dos nossos corpos.
Em vez de aderir à ladainha masculinista de algumas organizações autoproclamadas “revolucionárias”, que acreditam que são radicais porque recusam o feminismo por reduzi-lo ao sufragismo ou a alguma estupidez etimológica (um breve conhecimento da formação histórica do movimento forneceria elementos suficientes para a compreensão dos equívocos e elucidação da desonestidade intelectual frequentemente direcionada ao movimento), nós, as desertoras e desertores de gênero que compõem o CARA, reforçamos a urgência dum feminismo proletário. Feminismo este que é degenerado, porquanto não possui um sujeito generificado em específico (masculino, feminino ou não-binário). Feminismo este que não abra mão de modo algum da ação direta e que esteja decididamente orientado à revolução social. Foda-se que tais “revolucionários” nos chamem de “pós-moderna.os” – se é que sabem o que é isso, pois a descrição que lhe dão parece muito bem lhes servir: um solipsismo patético expresso em vícios de linguagem que resultam num imobilismo sempre justificado. O que eles têm feito além de escrever artigos para revistas acadêmicas ou blogues que somente seus orientandos e seguidores lerão? Nenhuma transformação social radical virá do emprego adequado das normas da ABNT e nem de posicionamentos obscurum per obscurus.
Deixando os fabricadores de lero-lero de lado, podemos tomar como exemplo de ação direta as extrações menstruais que os coletivos de autoajuda feministas realizavam na década de 70 com o auxílio de equipamento feitos pelas suas integrantes e que a xenofeminista Helen Hester menciona no seu livro sobre o xenofeminismo. Era uma forma de DIY, “Faça Você Mesma”: compreender como algo funciona e então replicá-lo de modo a redesignar suas funções. Conforme a sua criadora, Carol Downer, as extrações menstruais serviam tanto para cortar o período menstrual quanto para realizar um aborto, que não era legalizado nos Estados Unidos, que é o local do seu surgimento. Surge o Del EM, cuja utilização não gerava nenhum tipo de trauma na usuária. Claro, aqui estamos falando especificamente de mulheres cis. Começa num contexto de grupos formados por mulheres cis brancas e depois é absorvido pelas mulheres cis pretas. Essas extrações e abortos eram realizados de maneira extremamente segura e eram uma alternativa para aquelas mulheres cis que procuravam por clínicas de aborto clandestinas, nos quais os procedimentos eram realmente violentos e traumatizantes. O ponto crucial aqui é que tanto as extrações menstruais quanto os abortos eram politizados, não algo que ocorria e tchau. Havia uma mutualidade entre as envolvidas que lhes permitia compreender as implicações políticas de assumir uma autodeterminação sobre o seu próprio corpo. Esta autodeterminação era entendida de maneira coletiva, não individualizada. Com a legalização em 1973, perde-se um pouco dessa autonomia conquistada. Contudo, se ela nos parece tão distante hoje, talvez seja pelo fato de não estudarmos os esforços de luta daquelas e daqueles que vieram antes de nós.
O Estado negocia a vida das pessoas com capacidade de gestar. O Estado é heterossexista por excelência e ele não dá a mínima para a vida das pessoas com capacidade de gestar. Ele assina seus contratos com o sangue que derrama. Não devemos esperar nada dele e nem demandar coisa alguma, pois não somos mercadoria e as nossas vidas não são negociáveis. Em 2022 tivemos um registro de 62.626 ocorrências de estupros em pessoas com capacidade de gestar no Brasil, o que corresponde a aproximadamente um estupro a cada 8 minutos. O número não diminuiu com o suposto “fim do fascismo conquistado nas urnas”: em março de 2023 já se constatava uma diminuição no tempo de ocorrência, mas não de ocorrências propriamente, passando de 8 para 2 minutos, o que dá aí em torno de 822 mil casos de estupro por ano. Esse mesmo Estado não se ocupará em momento algum de modificar as condições que tornam o estupro possível. Se ele não se importa em derramar sangue de crianças pretas das favelas, por que se importaria agora com crianças violentadas? O Estado nos viola o tempo inteiro, nos penetra à força, seja através dos pais de família cisgênero que violenta sua esposa e suas crianças, seja através das balas disparadas pelos fuzis encomendados de Israel. O Estado é um estupro.
Em defesa dos nossos corpos, de todos os corpos-territórios com capacidade de gestar, não importa que idade tenham, levantemos barricadas e nos recusemos a acatar as ordens patriarcais que cotidianamente nos assolam, seja no âmbito privado/doméstico ou público. Que a nossa assertividade em seguir seja o prelúdio duma revolução que de fato se realizará!
Somente a nossa mutualidade traduzida em luta será capaz de transformar essa desgraça toda. Somente uma revolução social colocará fim decisivo ao cisheteropatriarcado capitalista!
Foto: Carol Downer segurando um kit Del-Em ao lado do seu gato Red.