Carta Aberta à Multidão de Sobreviventes da Psiquiatria | CARA & Edições Tormenta

Há 143 anos nascia o honorável escritor Lima Barreto, popularmente conhecido como Lima Barreto. Sua escrita, que planava como uma pluma entre a ousadia e a prudência, era decididamente marcada pela indignação e pelo esforço em transmutar as palavras em armas de enunciação. Lima Barreto, que, como grande parte dos racializados proletarizados, sofria com alcoolismo. Seria por conta deste que Lima Barreto seria internado no Hospital Nacional de Alienados, localizado no Rio de Janeiro, em 1914. Mas não era a primeira vez que o escritor se deparava com o cenário da loucura: seu pai havia trabalhado nas Colônias de Alienados na Ilha do Governador, em 1890, como almoxarife. 12 anos depois, o próprio pai enlouqueceu, passando de funcionário a paciente.

Da sua experiência de internação surgirá Diário do Hospício – O Cemitério dos Vivos. Observador sagaz, o escritor não poupava os costumes burgueses, a sociedade de privilégios e aqueles que deles desfrutavam descaradamente, o racismo e a indiferença social. No fundo, sabia Lima Barreto que a sua loucura não lhe era própria, efeito de desequilíbrios químicos seus, mas socialmente produzida. Num de seus relatos empregados como arma de enunciação, diz ele:

Veio-me, repentinamente, um horror à sociedade e à vida; uma vontade de absoluto aniquilamento, mais do que aquele que a morte traz; um desejo de perecimento total da minha memória na terra; um desespero por ter sonhado e terem me acenado tanta grandeza, e ver agora, de uma hora para outra, sem de fato ter perdido minha situação, cair tão baixo, que quase, me pus a chorar que nem criança.“

Sabemos que os manicômios não existem mais como antigamente. Mas isto não significa que tenham sido abolidos: não sendo estruturas monolíticas, mas sim estruturas plásticas de vigilância e controle, os manicômios atualizaram seus mecanismos, de modo a não serem mais percebidos enquanto tais. Muda-se a aparência, mas a relação de fundo permanece a mesma. “É loucura acreditar que os manicômios ainda existem”, diria um psiquiatra já disposto a atribuir um diagnóstico e internar compulsoriamente. Para quem acha que já não há manicômios – por reduzir o manicômio a um edifício e ignorar como ele opera, que se trate duma relação determinada de poder -, refrescamos a memória: no ano passado o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD), havia lançado um novo plano para atendimento à população em situação de rua que – vejam só! – prevê a internação compulsória de dependentes químicos, tal como na época do Lima Barreto, salvas as devidas especificidades históricas e sociais. A causa da dependência química, por sua vez, não é combatida e permanece intacta. Mas o que dizer do mesmo prefeito que, diante das enchentes que invadiram 20 mil casas em Acari no mês de janeiro, responde que “chuva não é surpresa”? O que dizer do mesmo prefeito responsável pelo desalojamento de mais de 10 mil famílias (aproximadamente 250 mil pessoas) em prol das obras da Copa do Mundo, em 2014?

É importante lembrar que a transexualidade deixou de ser efetivamente considerada um transtorno mental pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no dia 1° de janeiro de 2022. A classificação de de pessoas trans como sendo indivíduos doentes não descrevia a realidade concreta dessas pessoas, mas servia de acobertamento e cumplicidade do heterossexismo e do regime cisheteropatriarcal, tal como foi feito noutro momento com mulheres cis que não cumpriam o requisito necessário para uma esposa e se envolviam em relações extramaritais. Foi através das lutas sociais, como bem pontuaram o psicanalista Jean Alloch e o filósofo Paul Preciado, que as pessoas trans deixaram de ser consideradas doentes, não porque a medicina psiquiátrica “evoluiu” na estrada dos tijolos amarelos do progressismo.

Toda patologia psiquiátrica, distúrbio e transtorno mentais, neurose etc., possui uma sociogênese. A tentativa de atribuir aos nossos genes, à biologia, os males que são socialmente produzidos faz parte do caráter parasitário do capitalismo, de suas tentativas de controle cada vez mais internos através de comprimidos e da compressão dos espaços de sociabilidade, nos tornando sujeitos depressivos, isto é, que sem ter para onde caminhar, se afundam em si mesmos. Som de notificação: é o parasita dizendo que “somos todos iguais; se há alguma desordem, algum desequilíbrio, só pode ser de ordem natural, biológica”. A doença, tal como a conhecemos, não passa duma forma de inibição e impedimento que desola as nossas vidas e nos torna prisioneiras e prisioneiros cumprindo pena pelo tempo correspondente a uma vida sem que nos demos conta do quão pesadas são as correntes que nos prendem. Como afirma a rapaziada do Coletivo de Pacientes Socialistas (SPK), e com o que temos acordo:

Qualquer pessoa que se preocupe seriamente com os sintomas da doença tem de lidar com o poder da sociedade capitalista e com a organização do poder. As relações sociais traduzem-se completamente na materialidade do corpo e na imagem dos corpos = psiquê; o indivíduo produz seu corpo e psiquê no processo de produção organizado pelo capitalismo.”

Tal como a queda da pedra não poderia ser totalmente explicada fora do contexto da gravidade, o SPK concluiu que a doença mental não poderia ser totalmente explicada fora do contexto do capitalismo. Isto ocorre porque a condição psicológica dum indivíduo é a personificação das relações sociais que caracterizam a sociedade em que esse indivíduo existe: “a exigência do capitalismo de produzir mais-valia é antagônica à exigência dos indivíduos de viverem as suas vidas; um sintoma nada mais é do que a unidade imediata desta contradição que é sensorialmente perceptível.”

É em memória da luta da multidão de corpos marginalizados e sobreviventes da psiquiatria, dentre os quais se encontra o honorável escritor Lima Barreto, que convocamos todas as pessoas psiquiatrizadas; que sofrem com desligamento e crises de explosão emocional; que escutam vozes; cujas identidades de gênero e sexuais sofrem tentativas de cura (eufemismo para aniquilamento social); cujas vidas são ministradas por fluoxetina, escitalopram e clonazepam; cujos gestos repetitivos e involuntários são motivos de piadas por parte daqueles que não percebem o quão repetitivos e involuntários são os seus próprios gestos; que passaram por internação e que ficaram confinadas em si mesmas em seus quartos mal iluminados; que recorreram às drogas ilícitas como o crack como forma de lidar com o luto de seus parentes e amigos assassinados pela polícia militar ou a perda de suas casas provocadas pelos desalojamentos a mando do Eduardo Paes; que têm ideação suicida; que surtam com frequência; que sofrem disforia; que não conhecem outra sensação que a de esgotamento; que sofrem com o alcoolismo; para o Ato do Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Enquanto comunistas libertárias e anarcopunks, consideramos a nossa participação indispensável, porquanto nos opomos de maneira intransigente a toda forma de exploração, submissão e violação dos corpos. Por esta razão não poupamos esforços em dispor os nossos corpos na mesma fileira que as nossas irmãs e irmãos sobreviventes da psiquiatria contra o iatrocapitalismo.

O ato será realizado no dia 17 de maio, na Cinelândia, RJ. A concentração começará às 11h e o ato terá início às 13h. O lema desta vez é: Seguir em luta por uma cidade popular: pelos direitos da população em situação de rua. O ato é puxado pelo Núcleo Estadual do Rio de Janeiro do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (NEMLARJ).

Para quem se interessar, hoje às 19h terá uma reunião do NEMLA RJ para a construção e organização do Ato do Dia Nacional da Luta Antimanicomial. O local será a UERJ – unidade Maracanã, no Hall do 1° andar.

É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade”

Nise da Silveira

[Imagem: Clive Head. The Cherry Train (2017)]